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Viagem ao Estrangeiro

livros e viajantes

mês

novembro 2012

Elogio da Sombra

À imagem e semelhança do Cristo gravado na pele, ele zela pelos anjos caídos em um bacanal de vaga-lumes, num reino onde o discurso despeja a verdade intragável – entranhas (porque aqui é dentro) caroço – escombros do presente que insiste recalcado, casa das máquinas da stultifera navis onde ri a coragem dos derrotados e dos primogênitos imolados. E que negra, de fora opaca, de fora caos, apenas grânulos, vértice do contraste, de fora apenas o que o zoom dos estagiários da redação queimam e sulcam no fósforo, em pedra. De dentro, pouco se esconde dos meninos perdidos, do que a sombra contorna e revela. A memória do abismo não hesita. Fala direto, caminha zagueando. A manjedoura do homem à imagem e semelhança do Cristo gravado na pele é feita de gaze, algodão úmido e pedregulhos. Dali brotam a lava, o caule e o terremoto. Ante-fachada da Luz, cartão postal de uma indigesta cidade que dorme e ronca. A princípio o filete tênue que um contorno sombrio (uma infinidade de contornos) libera, áureo, anúncio do tempo, hiato primevo, latência da fecundidade das cores que do fundo e das superfícies pressente o que batizamos matéria: linhas, cadências, perspectiva, pássaros matinais e o calor úmido nos côncavos que ora dissipam onde outrora remoíam escamas e pedipalpos. Há movimento próspero, onda pós-diluviana. Sete dias. Banhados pela redenção e o asseamento, taciturnos se indistinguem sob as horas, entre pausas e compartimentos. Há movimento célere, e o outrora tímido e enviesado ora fulgura como um rei do devir, já não do presente. Iniludível. Inelutável. Exato cortejo apolíneo, Penteu vitorioso, tempestade límpida, total, que sopra da imagem edênica e endogâmica. E há movimento impetuoso, e as cores recuam pálidas, submersas no que as germinou. Do astro imperial, línguas de fogo cospem dente por dente o esclarecimento de profetas e filósofos, ardendo os hiatos e as ranhuras da perplexidade. E há movimento absoluto, novo dilúvio casto, alvo, olvido. Naufragados os côncavos, resta a tempestade ofuscante despegando do alto, de baixo, de tudo. (Da obra “Apagaram as Sombras” de Keren Chernizon)

o som de não estar mais

daqui, anotações para um mapa qualquer – perder-se, sempre. A esta luz. Janelas podem estar abertas ou, cerradas, fundir o espaço. Pouco. Tudo se comporta como ameaça, indício, grade. Falta pouco. Os punhos da camisa; os últimos fios de um sol distante, íntimos. Uma pessoa que entra, sua conversa. Perfura a fala, estaca entre sílabas, o medo. Sem direção. Lembrar visita as horas, vítima. Como os ponteiros voltando rápidos ao mesmo ponto, como os limites de uma cicatriz se expandindo, ferida eterna reaberta. Atingida, então, outra instância da insônia: acordar. O passo seguinte, o estalo das tábuas, o som de não estar mais. As engrenagens do calendário já trabalham, mastigam a manhã sem qualquer ruído.

Tarso de Melo, Planos de fuga e outros poemas

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