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Natal de Exilados

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Desde os quinze, dezesseis anos, ele aparece nas ruas e nas casas como uma surpresa paulatina. As pessoas são tomadas pelo inexplicável impulso de comprar nos chineses ou retirarem da garagem os emaranhados de luzes piscantes, pinheiros de plástico, bolas de vidro e presépios que seriam a parte mais divertida, não jazessem tão imaculados em cima da televisão. Segue-se a confraternização e a mesa farta. E depois de algumas horas um certo embotamento, a noite que murcha cedo demais. Ou talvez seja eu, desacostumado à presença prolongada em meio à inundação de estímulos, ou a tantos símbolos desprovidos de sentido (manjedoura, pinheiros, luzes chinesas piscando). Não há qualquer resquício do sagrado, se excetuarmos o sagrado materialismo da farofa doce, da perna de porco, do peru, chester, daquele cálice de vinho sobre uma toalha vermelha. Ou de um dia que se liga a outros quase idênticos pela sua recorrência anual.

Subvertendo a tradição com a mesma inércia com que a sigo, passei o Natal no verão portenho com um casal de jovens colombianos, uma italiana e dois argentinos. “O Natal dos exilados”, exagerou o argentino, mimetizando talvez um tio importuno. Martina preparou todos os pratos, e a única coisa que fiz foi subir e descer várias vezes os árduos lances entre o segundo piso e a rua, equilibrando as sacolas de comida. Fazia muito calor e todos estavam cansados como em uma peça de Beckett. Ou talvez fosse eu, que não tinha condição de estar suficientemente presente para acompanhar as conversas. Subimos ao terraço. A luz externa atraía uma espécie numerosa de baratas voadoras, e decidimos comer e beber no escuro. Todos eram doces e amigáveis, mas não havia naquela ceia multiétnica o sincretismo que une uma família aos seus movimentos quase coreografados. Do alto, a cidade estava deserta. Os fogos começaram à meia-noite. Um bombardeio noturno. Os meninos tentaram soltar dois balões (globos), que se incendiaram antes de ganhar altura. Eu tirei fotos. Em dado momento, um pai e três crianças vieram ao terraço com os seus próprios balões, e os fizeram subir sem dificuldade. Elevaram-se, hesitantes, ganharam velocidade, atravessaram temerárias as copas escuras e esmoreceram, baixando sem pressa em algum lugar. Naquele momento, todos já estavam esparramados no terraço, deitados em cangas ou estirados em cadeiras de praia.

El agua de la ausencia

me preguntaste el por qué de mis viajes

no supe contestarte

ahora te lo digo que viajo

para adentrar y salir de las cosas

tocarlas, sostener la sorpresa de las tesituras

para no saber. porque no sé

afuera todo es más grande, incontenible

tener una piel bajo la cual me contenga

para poder tocar

alejarme de lo que decían los otros (ellos no saben)

ser otro en mi, en otro

no pactar con las tristes parejas, con los mimos que no son sino el miedo de estar solo

que nadie viva bajo mi sombra

resistir al embotado automatismo

desasirme de herencias indeseables

perderme en el agua de la ausencia

y hermanarme con los que todavía no planificaron su futuro, con los que desean crear en movimiento

no quiero hacer carrera, rehúsome a acumular verdades, electrodomésticos

prefiero ser nadie

que nadie me conozca

que nadie diga que me conoce

un fantasma sin nombre

y hacerme en el cambio de mi deseo esfinge

y oír esa música, la mía, que tañe bajito Image

Fractais do Amor

Carmelo

Vagos desenhos de um devir anunciado.

Desgarrar-se. De que enlaces? Num compartimento qualquer da mochila, a casa distante (a que puseram abaixo). Passos palmilhando um cascalho de outroras. O itinerário vazio a colorir: bosques, topografias. Sussurrando outros passos. Enlaces acidentais, saudades estranhas. De quê? De que porção sépia das coisas? Ressonâncias irreconhecíveis. Tudo o que se foi construindo com a alegria de um Sísifo. Para poder esquecer. Filhos para o Mundo. Ritual íntimo. De resoluta seta às fractais do amor. De tronco lenhoso a ramificações. Do lago esquálido aos afluentes.

Parte de mim: o que já não é.

Sangue? Porosidade óssea?

Espirais da permanência.

Tiempo de Vuelo

Logo de minha chegada, fui à Sala São Paulo com uma amiga para assistir a um jovem pianista armênio que transformava seu instrumento em um sintetizador, utilizando um celular para gravar e reproduzir um cântico berbere, produzindo algo que ficava entre o jazz, Yann Tiersen e um Chopin mais dissonante. Em dado momento, Tigran, o pianista fez um duo improvisado com um pandeirista magro e alto, e que permaneceu de pé no palco da sala durante a apresentação. Fomos de metrô e decidimos retornar de táxi, porque na ida topamos com a procissão dos malucos da Cracolândia, uma visão impressionante, dado que estava há apenas três dias na cidade, e não havia qualquer barreira que separasse o caminho daquela gente esquecida por Deus e nós, aprumados e assustado, apertando o passo ao longo da calçada defronte ao Museu da Resistência. Eu já tinha matado saudade do pão de queijo, do torresmo e da carne de sol, almoçado na Vila Madalena e feito o exame de inglês para ingressar no doutorado da Psico-USP. Não havia teias nas passarelas cobertas da faculdade, um sol alegre queimava a grama amarela da Praça do Relógio, e pesavam bastante os dois dicionários que levei para esmiuçar um texto de William James que discorria sobre a distinção entre o vivido e a assimilação do vivido pela cognição. Aquela primeira semana seria um tanto frenética, ideal para me manter afastado de páginas da internet que anunciavam respostas que, vim a saber depois, não chegariam. A melancolia do quarto sobreveio na segunda semana, e resolvi criar vergonha e comprar uma bela Canon por R$ 750 em um dos estandes dois por dois da Paulista com a Pamplona. A dona da loja era uma coreana pálida que não falava muito o português, e acabei sendo atendido pela funcionária de lábia excepcional que partilhava o quadrado com a coreana e me acompanhou até o banco para fazer um saque no valor da câmera. A moça – baixinha e de passada baiano – comentava a balada da noite anterior, e eu só tinha atenções para as fotos ainda inexistentes que tiraria com a minha nova aquisição de lente gorda, acoplada ao corpo da máquina (i.e., semi-profissional), eficaz e portátil. A outra câmera tinha ficado nas mãos de dois malucos de moto no bairro do Boca esquecidos por Deus, privando-me da possibilidade de registrar o que havia ocorrido comigo entre os meses de julho e outubro. Nesse tempo algo se perdeu em razão da ausência de registros. Comecei a dar aulas sobre o personagem na criação literária, a escrever para quase duzentas pessoas e começar a elaboração de um artigo sobre a obra de Moacyr Scliar. Já tinha ficado claro que, não importava o quanto me dedicasse à leitura de seus livros, a tentativa inútil de abarcá-la em sua totalidade não seria uma opção. O afável gaúcho publicara mais de setenta títulos. Por isso comprei, em uma livraria da Paulista, apenas alguns poucos livros mais famosos do autor, uma antologia de artigos críticos, esperando que me ocorresse um recorte possível. Adquiri também uma “edição de bolso” de O Som e a Fúria, uma edição de bolso com sete livros compilados de Drummond, um tomo de Freud traduzido diretamente do alemão e o volume II da série de entrevistas da Paris Review. Acompanhava as manifestações na Argentina pelos jornais. Escrevia pouco. O livro que iniciara em abril e estava quase no fim estacou de vez nos limites da prosa. Documentário pedia atenção. Nunca era suficiente insistir que a Funarte desse início à distribuição dos exemplares para os jornalistas, críticos e autores. Votei nulo nas eleições para prefeito (se houvesse alguma chance do Serra ganhar, não teria dúvidas em apelar para o pragmatismo) durante o segundo turno. Justifiquei minha ausência no primeiro turno. Alguns dos autores da antologia que estou organizando para o Sesc manifestavam dificuldades em depreender artigos palatáveis das transcrições dos encontros da Tertúlia. Falei por e-mail com Marçal Aquino, Antonio Cícero, Lourenço Mutarelli e Eric Nepomuceno. Alguns desistiram, outros ficaram. O lançamento no dia doze foi o mais bacana que já fiz. Fiquei comovido em rever amigos de tantas eras e recebi as primeiras impressões da obra. Para o Abílio Godoy, a única chave possível para leitura do romance era a pirotecnia. Àquela altura meu irmão já tinha brigado comigo e dito que ninguém me aguenta. Àquela altura minha irmã já tinha brigado comigo e dito que sou ausente. Àquela altura eu já tinha sido um tanto agressivo com minha tia. Àquela altura minha avó já tinha me perguntado se ainda demoraria para eu ir embora de novo. Àquela altura o dinheiro já tinha acabado. Àquela altura eu já tinha combinado desastrosamente a caipirinha e a pinga durante uma festa cheia e com poucos conhecidos. Alguns de meus alunos apresentavam resistência ao Kundera que propus como leitura obrigatória. Mas tudo se ajeita de algum modo, e comecei a correr no parque, parei de fumar (ainda que não tenha feito exercícios para fortalecer a musculatura paravertebral), e a amiga que foi comigo à Sala São Paulo topou me acompanhar ao Rio e descolou um sofá para algumas noites. Ir ao Rio é tomar um copo espesso de açaí no café da manhã, flagrar as luzinhas do morro na cerração chuvosa, contornar homens fortemente armados nas ruas ascendentes. Vestir uma camiseta úmida de maresia pela terceira vez seguida. Ouvir as piadas de cariocas que trabalham na Globo, e que parecem piadas de programas deploráveis da Globo. E lançar meu livro no Palácio Capanema entre murais de Portinari. Tomei muitas com o Ed, a Lica, o Roga e a Fernanda na Pedra do Sal (forró), no beco da sardinha (mesas sob toldos e sardinhas fritas empanadas). Partilhei minha teoria de que no Rio nada está perto. Ou se vê a paisagem de longe – o Pão de Açúcar durante uma corrida na praia do Flamengo – ou se está dentro. Antes e depois do hiato carioca, eu já falava sobre a experiência da desintegração potencial da instância egóica na situação de excesso de sentido e nos limites de nosso aparato simbólico durante a errância espacial, e a turma forte de São Bernardo me ouvia com as asas do devaneio. Falei disso em minha entrevista do doutorado e não fui tão eloquente. Eloquência era uma arte no papo corintiano de Tarso, Reynaldo, Carlos Felipe Moisés, Donizete Galvão (palmeirense) e outros na pizzaria Urca. Vi o Tomás fofo, vi a Alice fofa. Nasceu o Júlio, que não consegui ver. Passei a madrugada ouvindo chorinho no Bar do Cido, e me arriscando ao batuque pela manhã. A biblioteca que deixei órfã no Brasil foi uma questão. Começar a escrever poemas em espanhol foi um surto e uma transcendência. O momento em que já não sentia tédio ao ficar no quarto de noite. Li O Centauro no Jardim, reli A Insustentável Leveza do Ser. Não sei quantas vezes percorri Caderno Inquieto, de Tarso de Melo. Li uma edição da Bravo de ponta a ponta em uma sentada. Clarice Lispector foi uma boa entrevistadora. James Joyce escrevia cartas pornográficas. Criei vergonha e comprei Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace, que ainda não li. Perto do fim dos quarenta e cinco dias de minha permanência no Brasil, uma fotógrafa me convidou para escrever um texto sobre suas fotos da Cracolândia. O prazo era a data de meu retorno. Ela tinha passado muitos meses em meio ao cortejo de malucos esquecidos por Deus, e eu deveria trabalhar num texto que aproximasse a sombra na fotografia (um campo onde a luz é tratada obsessiva e quase que exclusivamente) e o lugar marginal que aquela gente ocupava no centro da cidade próxima ao bairro em ruínas da Luz. Concluí o poema dois dias antes de retornar. Isso foi poucos dias antes de uma amiga chegar da Bélgica. E um dia antes da despedida, uma festa de despedida no Ibotirama da Augusta, onde os amigos se dispersaram entre as mesas em uma formação contínua de grupos e piadas e conversas sérias e provocações que às vezes se ouvia, às vezes não. Elogio da sombra. Uma das últimas coisas que meti na mala foi um pandeiro meio desafinado de couro e madeira, oito polegadas, que segundo me disseram ritmava um pouco de choro, de bossa, de samba e outros estilos que não me lembro. A câmera foi na bagagem de mão.

Elogio da Sombra

À imagem e semelhança do Cristo gravado na pele, ele zela pelos anjos caídos em um bacanal de vaga-lumes, num reino onde o discurso despeja a verdade intragável – entranhas (porque aqui é dentro) caroço – escombros do presente que insiste recalcado, casa das máquinas da stultifera navis onde ri a coragem dos derrotados e dos primogênitos imolados. E que negra, de fora opaca, de fora caos, apenas grânulos, vértice do contraste, de fora apenas o que o zoom dos estagiários da redação queimam e sulcam no fósforo, em pedra. De dentro, pouco se esconde dos meninos perdidos, do que a sombra contorna e revela. A memória do abismo não hesita. Fala direto, caminha zagueando. A manjedoura do homem à imagem e semelhança do Cristo gravado na pele é feita de gaze, algodão úmido e pedregulhos. Dali brotam a lava, o caule e o terremoto. Ante-fachada da Luz, cartão postal de uma indigesta cidade que dorme e ronca. A princípio o filete tênue que um contorno sombrio (uma infinidade de contornos) libera, áureo, anúncio do tempo, hiato primevo, latência da fecundidade das cores que do fundo e das superfícies pressente o que batizamos matéria: linhas, cadências, perspectiva, pássaros matinais e o calor úmido nos côncavos que ora dissipam onde outrora remoíam escamas e pedipalpos. Há movimento próspero, onda pós-diluviana. Sete dias. Banhados pela redenção e o asseamento, taciturnos se indistinguem sob as horas, entre pausas e compartimentos. Há movimento célere, e o outrora tímido e enviesado ora fulgura como um rei do devir, já não do presente. Iniludível. Inelutável. Exato cortejo apolíneo, Penteu vitorioso, tempestade límpida, total, que sopra da imagem edênica e endogâmica. E há movimento impetuoso, e as cores recuam pálidas, submersas no que as germinou. Do astro imperial, línguas de fogo cospem dente por dente o esclarecimento de profetas e filósofos, ardendo os hiatos e as ranhuras da perplexidade. E há movimento absoluto, novo dilúvio casto, alvo, olvido. Naufragados os côncavos, resta a tempestade ofuscante despegando do alto, de baixo, de tudo. (Da obra “Apagaram as Sombras” de Keren Chernizon)

despedidas

4 dias. Desperto cansado, de um salto. Meu corpo se apruma e vai fazer um café, permitindo que eu cochile o resto da tarde. Logro apenas atividades secundárias, sem motivo. Tiro fotos da lua. Fumo. Tusso. Contemplo o chão encardido. Esfrego a barba no espelho. O relógio da memória continua sem corda. Não lembro do que fazer. Dia posfácio. Páscoa. Prefácio.

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