Logo de minha chegada, fui à Sala São Paulo com uma amiga para assistir a um jovem pianista armênio que transformava seu instrumento em um sintetizador, utilizando um celular para gravar e reproduzir um cântico berbere, produzindo algo que ficava entre o jazz, Yann Tiersen e um Chopin mais dissonante. Em dado momento, Tigran, o pianista fez um duo improvisado com um pandeirista magro e alto, e que permaneceu de pé no palco da sala durante a apresentação. Fomos de metrô e decidimos retornar de táxi, porque na ida topamos com a procissão dos malucos da Cracolândia, uma visão impressionante, dado que estava há apenas três dias na cidade, e não havia qualquer barreira que separasse o caminho daquela gente esquecida por Deus e nós, aprumados e assustado, apertando o passo ao longo da calçada defronte ao Museu da Resistência. Eu já tinha matado saudade do pão de queijo, do torresmo e da carne de sol, almoçado na Vila Madalena e feito o exame de inglês para ingressar no doutorado da Psico-USP. Não havia teias nas passarelas cobertas da faculdade, um sol alegre queimava a grama amarela da Praça do Relógio, e pesavam bastante os dois dicionários que levei para esmiuçar um texto de William James que discorria sobre a distinção entre o vivido e a assimilação do vivido pela cognição. Aquela primeira semana seria um tanto frenética, ideal para me manter afastado de páginas da internet que anunciavam respostas que, vim a saber depois, não chegariam. A melancolia do quarto sobreveio na segunda semana, e resolvi criar vergonha e comprar uma bela Canon por R$ 750 em um dos estandes dois por dois da Paulista com a Pamplona. A dona da loja era uma coreana pálida que não falava muito o português, e acabei sendo atendido pela funcionária de lábia excepcional que partilhava o quadrado com a coreana e me acompanhou até o banco para fazer um saque no valor da câmera. A moça – baixinha e de passada baiano – comentava a balada da noite anterior, e eu só tinha atenções para as fotos ainda inexistentes que tiraria com a minha nova aquisição de lente gorda, acoplada ao corpo da máquina (i.e., semi-profissional), eficaz e portátil. A outra câmera tinha ficado nas mãos de dois malucos de moto no bairro do Boca esquecidos por Deus, privando-me da possibilidade de registrar o que havia ocorrido comigo entre os meses de julho e outubro. Nesse tempo algo se perdeu em razão da ausência de registros. Comecei a dar aulas sobre o personagem na criação literária, a escrever para quase duzentas pessoas e começar a elaboração de um artigo sobre a obra de Moacyr Scliar. Já tinha ficado claro que, não importava o quanto me dedicasse à leitura de seus livros, a tentativa inútil de abarcá-la em sua totalidade não seria uma opção. O afável gaúcho publicara mais de setenta títulos. Por isso comprei, em uma livraria da Paulista, apenas alguns poucos livros mais famosos do autor, uma antologia de artigos críticos, esperando que me ocorresse um recorte possível. Adquiri também uma “edição de bolso” de O Som e a Fúria, uma edição de bolso com sete livros compilados de Drummond, um tomo de Freud traduzido diretamente do alemão e o volume II da série de entrevistas da Paris Review. Acompanhava as manifestações na Argentina pelos jornais. Escrevia pouco. O livro que iniciara em abril e estava quase no fim estacou de vez nos limites da prosa. Documentário pedia atenção. Nunca era suficiente insistir que a Funarte desse início à distribuição dos exemplares para os jornalistas, críticos e autores. Votei nulo nas eleições para prefeito (se houvesse alguma chance do Serra ganhar, não teria dúvidas em apelar para o pragmatismo) durante o segundo turno. Justifiquei minha ausência no primeiro turno. Alguns dos autores da antologia que estou organizando para o Sesc manifestavam dificuldades em depreender artigos palatáveis das transcrições dos encontros da Tertúlia. Falei por e-mail com Marçal Aquino, Antonio Cícero, Lourenço Mutarelli e Eric Nepomuceno. Alguns desistiram, outros ficaram. O lançamento no dia doze foi o mais bacana que já fiz. Fiquei comovido em rever amigos de tantas eras e recebi as primeiras impressões da obra. Para o Abílio Godoy, a única chave possível para leitura do romance era a pirotecnia. Àquela altura meu irmão já tinha brigado comigo e dito que ninguém me aguenta. Àquela altura minha irmã já tinha brigado comigo e dito que sou ausente. Àquela altura eu já tinha sido um tanto agressivo com minha tia. Àquela altura minha avó já tinha me perguntado se ainda demoraria para eu ir embora de novo. Àquela altura o dinheiro já tinha acabado. Àquela altura eu já tinha combinado desastrosamente a caipirinha e a pinga durante uma festa cheia e com poucos conhecidos. Alguns de meus alunos apresentavam resistência ao Kundera que propus como leitura obrigatória. Mas tudo se ajeita de algum modo, e comecei a correr no parque, parei de fumar (ainda que não tenha feito exercícios para fortalecer a musculatura paravertebral), e a amiga que foi comigo à Sala São Paulo topou me acompanhar ao Rio e descolou um sofá para algumas noites. Ir ao Rio é tomar um copo espesso de açaí no café da manhã, flagrar as luzinhas do morro na cerração chuvosa, contornar homens fortemente armados nas ruas ascendentes. Vestir uma camiseta úmida de maresia pela terceira vez seguida. Ouvir as piadas de cariocas que trabalham na Globo, e que parecem piadas de programas deploráveis da Globo. E lançar meu livro no Palácio Capanema entre murais de Portinari. Tomei muitas com o Ed, a Lica, o Roga e a Fernanda na Pedra do Sal (forró), no beco da sardinha (mesas sob toldos e sardinhas fritas empanadas). Partilhei minha teoria de que no Rio nada está perto. Ou se vê a paisagem de longe – o Pão de Açúcar durante uma corrida na praia do Flamengo – ou se está dentro. Antes e depois do hiato carioca, eu já falava sobre a experiência da desintegração potencial da instância egóica na situação de excesso de sentido e nos limites de nosso aparato simbólico durante a errância espacial, e a turma forte de São Bernardo me ouvia com as asas do devaneio. Falei disso em minha entrevista do doutorado e não fui tão eloquente. Eloquência era uma arte no papo corintiano de Tarso, Reynaldo, Carlos Felipe Moisés, Donizete Galvão (palmeirense) e outros na pizzaria Urca. Vi o Tomás fofo, vi a Alice fofa. Nasceu o Júlio, que não consegui ver. Passei a madrugada ouvindo chorinho no Bar do Cido, e me arriscando ao batuque pela manhã. A biblioteca que deixei órfã no Brasil foi uma questão. Começar a escrever poemas em espanhol foi um surto e uma transcendência. O momento em que já não sentia tédio ao ficar no quarto de noite. Li O Centauro no Jardim, reli A Insustentável Leveza do Ser. Não sei quantas vezes percorri Caderno Inquieto, de Tarso de Melo. Li uma edição da Bravo de ponta a ponta em uma sentada. Clarice Lispector foi uma boa entrevistadora. James Joyce escrevia cartas pornográficas. Criei vergonha e comprei Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace, que ainda não li. Perto do fim dos quarenta e cinco dias de minha permanência no Brasil, uma fotógrafa me convidou para escrever um texto sobre suas fotos da Cracolândia. O prazo era a data de meu retorno. Ela tinha passado muitos meses em meio ao cortejo de malucos esquecidos por Deus, e eu deveria trabalhar num texto que aproximasse a sombra na fotografia (um campo onde a luz é tratada obsessiva e quase que exclusivamente) e o lugar marginal que aquela gente ocupava no centro da cidade próxima ao bairro em ruínas da Luz. Concluí o poema dois dias antes de retornar. Isso foi poucos dias antes de uma amiga chegar da Bélgica. E um dia antes da despedida, uma festa de despedida no Ibotirama da Augusta, onde os amigos se dispersaram entre as mesas em uma formação contínua de grupos e piadas e conversas sérias e provocações que às vezes se ouvia, às vezes não. Elogio da sombra. Uma das últimas coisas que meti na mala foi um pandeiro meio desafinado de couro e madeira, oito polegadas, que segundo me disseram ritmava um pouco de choro, de bossa, de samba e outros estilos que não me lembro. A câmera foi na bagagem de mão.