Eu sei, eu sei. Não estou em dia com os meus relatos. São esparsos, incompletos, intuem lacunas que soam mais a confusão que a artifício narrativo. O que fazer se os olhos mudam com a paisagem?
Torci o pé esquerdo semana passada. No dia seguinte havia um inchaço considerável, e aventei a possibilidade de ir ao hospital. Mantive contato com uma amiga no Brasil, muito querida, para quem enviei selfies do meu pé de tantas em tantas horas. No final, não precisei imobilizar; o inchaço diminuía. Mas precisaria ficar de molho no quarto por uma semana, e me pareceu desolador apenas conceber esta possibilidade. Havia comprado o bilhete de trem para Chiang Mai, a segunda maior cidade na Tailândia, que ficava a doze horas de trem ao norte e perto das fronteiras com Laos, Mianmar e China, em uma das extremidades da cordilheira do Himalaia. Chiang Mai, diziam, é mais tranquila e fresca que a capital. Com a iminência de minha nova partida, queria visitar vários lugares que tinha deixado para o final. Fiasco de viajante, amarguei. Uma torção no pé, um simples passo em falso. Eu não me enfiara numa floresta com babuínos raivosos, nem fizera manobras radicais com a minha moto. Não tinha escalado um paredão e nem tentara uma posição pouco ortodoxa nas aulas de ioga. Apenas torci o pé no último degrau, mais alto que os anteriores, de uma escada do Zaks no Sukhumnvit Soi 11, onde dançara durante algumas horas. Meus pés são voltados para dentro, o que costuma acontecer com fisiologias com pouco alongamento. Quando estou sentado, não consigo deixar as pernas fechadas por muito tempo. Elas sempre se inclinam para fora. Com as minhas dores lombares, a calcificação no ombro esquerdo, o pulso direito fodido e o joelho direito inconstante, meu corpo todo era um calcanhar de Aquiles. Velho. E agora sozinho, no alto de minhas tolas pretensões itinerantes.
Um drama, claro. Vão dizer: um verdadeiro melodrama. Não sinto tantas dores assim, estou exagerando. Eu nunca sei. A minha criação não contemplou o que não é tudo ou nada, o caminho razoável do cuidado não neurótico; ainda estou aprendendo – sempre – a lidar com a minha própria ambiguidade. “Viajo para conhecer a minha geografia”, é a citação de Suicídios Exemplares, de Vila-Matas.
As it turned out, no fim, no final, no fim das contas, a semana de reclusão revelou-se um descanso, uma revisão profunda, o ventre da baleia de modo tal como jamais poderia em uma cidade povoada de espaços familiares. Não sei se estou dramatizando aqui também. Colocar em palavras sempre produz esta ênfase. Ventre ou não ventre (a loucura pode ser um ventre sem saída de epifanias insofismáveis), lembrei-me de como ler e escrever num outro país são atividades que adquirem a densidade e a concentração que tinham na adolescência, essa espiral no tempo em torno do presente durante um ato. Ato de concentração e dispersão absolutas. Um silêncio interno na estranheza. E havia perdido isso. Em certa medida, seguirá perdido para sempre, porque adulto é preciso muita entrega (ou uma estabilidade financeira, afetiva) para calar as preocupações. Recomecei a ler 2666, a última obra de Bolaño, cujo personagem principal é uma cidade fantasma na fronteira do México onde mulheres pobres e sem nome são assassinadas às milhares e cujos corpos aparecem no deserto, como se pertencessem ao deserto, como se nunca tivessem saído daquela paisagem vazia. Bolaño consegue transformar o que é exótico em uma proliferação enigmática. Ele descreve o entardecer como uma rosa carnívora; em outro ponto, comenta que determinado piso rescendia a tabaco holandês; o deserto é um jardim petrificado, proliferando narrativas entre o sentido e a falta de sentido, feito uma boa novela criminal que nos pretende confundir a cada revelação, e apresentar verdades de passagem. O que significaria Testamento Geométrico, pendurado num varal como um ready-made de Duchamp? Por que um crítico italiano, outro espanhol, um francês e uma inglesa seguiriam atrás de um escritor alemão no México? E aqueles milhares de sonhos exuberantes que parecem um recurso ruim e repisado, mas que por sua profusão são tomados por nova luz? São muitas as mensagens. Uma das cenas que apresenta o quase-alterego de Bolaño, um sujeito chamado Amalfitano, segue assim:
– O exílio deve ser algo terrível – disse Norton, compreensiva.
– Na verdade – disse Amalfitano – agora o vejo como um movimento natural, algo que, a sua maneira, contribui para abolir o destino ou o que comumente se considera o destino.
– Mas o exílio – disse Pelletier – está cheio de inconvenientes, de saltos e rupturas que mais ou menos se repetem e que dificultam qualquer coisa importante que se proponha a fazer.
– Aí radica precisamente – disse Amalfitano – a abolição do destino.
Em um texto crítico Bolaño afirmava o exílio como a entrega do destino nas mãos do acaso. Seria o acaso, portanto, estes “inconvenientes, saltos e rupturas” que persigo e o que me diferencia de um escritor de renome que vai a algum festival qualquer de literatura, passa lá cinco dias tomando cerveja com os amigos e volta se gabando de que compreendeu a alma do país, como se tivesse realmente se permitido sair de seus trejeitos, seu círculo seguro de amigos e opiniões. Mas como a viagem poderá ser a abolição do destino? Não seria ela a sua consumação? Bolaño deve estar se referindo à determinação contingencial, a este pensamento nacional e introvertido. Se Bolaño continuasse no Chile aspiraria apenas à poesia chilena. Como saiu, pode dizer com Nicanor Parra que os quatro maiores poetas chilenos são três, Alfonso de Ercilla e Ruben Darío, que nem chilenos eram. Foram viajantes, gente de passagem, como Bolaño. O destino seria aqui uma restrição, a permanência em uma mesma posição. É fácil criticar o poeta doméstico e provinciano, os embates entre os poetas por uma respeitabilidade que os alce para além das monotonias da classe média; mais difícil é falar mal do velho artesão japonês, desde a juventude torneando o mesmo vaso. A repetição e a continuidade, contudo, não me soam a destino. Ou podem ser, mas precisam ser confrontados com o destino trágico: o jovem Édipo – do grego, Οἰδίπους, Oidípous, “pés inchados” – viaja para fugir ao destino e o reencontra, enganado pela ilusão de que o conhece. Édipo foge de Corinto após saber de seu destino pelo oráculo de Delfos. Seus pais, no entanto, são o rei e a rainha de Tebas, que abandonaram o filho aos lobos após ouvirem a mesma sentença do oráculo. Édipo não sabe que seu verdadeiro lar é Tebas; pois foi adotado ainda bebê pelo rei de Corinto. Édipo vai de Corinto a Tebas. Quanto mais distante, mais próximo está. Seu lar é um outro lar. Seu lar é a tragédia, do qual, para o qual, ele foge e encontra.
Já Bolaño viaja para que obstáculos obstem os seus tolos objetivos, o que ele vê como perfeitamente natural. Não somos impotentes frente aos deuses que traçam o nosso caminho. Podemos parar de jogar, boicotar o sistema, romper as engrenagens azeitadas. Bolaño vendendo bijuterias na cidade costeira de Blanes, Bolaño enlouquecendo de fome e solidão numa casa de campo, Bolaño como segurança de um camping nas cercanias de Barcelona, ou furtando livros na capital mexicana. O destino de Édipo não é o destino de Bolaño. Para aquele, uma travessia e um retorno a um lar maldito. Para Bolaño a abolição da ideia de lar, sendo o destino a estreiteza do pensamento assentada na imobilidade. Abolir o destino é o verdadeiro destino se queremos enxergar de modo mais amplo.
Eu não enxergo de modo mais amplo. Meus dias são absolutos, e por isso entro em pânico quando torço o pé, abandono as aulas de alemão e passo três dias escrevendo um comentário em um blogue que talvez não caiba em nenhum livro, mas que bem, são um diálogo interno e externo, uma elaboração. Mas se é preciso pensar mais grande, e daí tentar pensar ainda mais grande, com calma mas sem interrupções (devagar e sempre), devo tentar adivinhar o que estou fazendo aqui, mesmo sabendo que minhas conclusões são pequenas diante de meu destino. Concluo, por ora, que deveria abreviar os posts ao mais imediato, ao anedótico, e concentrar-me naquilo que está realmente se passando e que me ultrapassa. Cheguei aqui querendo tudo, ser jornalista, guia de viagens, fotógrafo e expedicionário. Agora só quero viajar devagar, manter-me, ler e escrever o meu livro. Não três livros. Apenas este, que durante meus dias de imobilidade recomecei a planejar. Escrevo atrás de estímulos que me escrevam. Para este um livro, que faz parte da coleção “Pequenos Exílios”, mas que integra também um plano maior, e que ainda se tornará maior. E neste livro escreverei aquilo que por pudor ou ambição, não ousei confessar aqui.
Estou em Chiang Mai, que é realmente mais fresca e amigável que Bangkok. Aqui farei as aulas de ioga, a meditação, entrarei em contato com as ongs de refugiados birmaneses e escreverei. Vamos ver o que mais me reserva.