O exilado foi arrancado (ou arrancou-se) de seu ambiente costumeiro. Costume e hábito são um véu sobre a realidade. Em nossa rotina, nos atentamos para as mudanças, mas não para o que permanece fixo, que é redundante. Mas no exílio tudo é incomum. O exílio é um oceano de informação caótica. A ausência de redundância no exílio não permite que as informações sejam absorvidas pelo exilado. Para poder viver, o exilado deve primeiro transformar a tempestade de informações em torno dele em mensagens significativa; ou seja, deve processar dados. Trata-se de uma questão de vida ou morte. Se ele não for capaz de processar dados, será inundado e consumido pelo tufão do exílio. Processar dados é sinônimo de criação. Para não perecer, o exilado deve ser criativo.
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O hábito é um cobertor macio. Arredonda os cantos e amortece os barulhos. É portanto anestésico (de aisthestai, perceber) porque nos impede de perceber informações, como ângulos ou ruídos. O hábito é agradável porque bloqueia percepções e porque anestesia. É reconfortante. Torna as coisas agradáveis e tranquilas. Todo ambiente rotineiro é gracioso e tranquilo e sua graça é uma das fontes do amor pela terra de origem, que confunde graça com beleza. A descoberta começa quando se retira o cobertor. Então tudo se torna incomum, monstruoso e inquietante. Para entender tal estranhamento basta considerar o movimento das mãos e dos dedos pelo ponto de vista de um marciano. Surge uma monstruosidade cheia de tentátulos. Os gregos chamavam esta descoberta de a-letheia, uma palavra que traduzimos por verdade.
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Para o exilado é como se ele tivesse sido expulso do seu próprio corpo. Mesmo as coisas rotineiras causam estranhamento. Tudo se torna anguloso e barulhento. Ele se volta para a descoberta e a verdade.
O estado de transcendência no qual se encontra (ou se perde) o exilado faz com que tudo pareça provisório e transitório. No hábito, somente as mudanças são percebidas. No exílio, tudo parece estar em constante mudança, e o exilado vê absolutamente tudo como um desafio para suas transformações. Sem a cobertura do hábito, o exilado se torna um revolucionário, mesmo que sua meta seja somente a própria sobrevivência no exílio. O que justifica que ele seja tratado com suspeitas em sua terra nova. Sua presença ali perfura o habitual e ameaça sua graça.
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Exilados são pessoas desenraizadas que buscam desenraizar tudo à sua volta para criar raízes. Fazem isso espontaneamente. (…) Ocasionalmente, o exilado terá consciência do lado vegetal/vegetativo do seu exílio. Talvez ele descubra que o ser humano não é uma árvore. E que a dignidade humana consiste precisamente em não ter raízes. Que o ser torna-se humano somente quando arranca as raízes de vegetal que o prendem à terra. Existe uma palavra negativa em alemão: “Luftmensch” (literalmente, pessoa aérea). O exilado talvez descubra que ar e espírito são conceitos muito próximos e que “Luftmensch” talvez signifique pura e simplesmente humano.
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O exilado deveria tentar puxar a si mesmo pelos cabelos para fora do hábito ou deveria provocar uma nova expulsão? Posta assim, a questão da liberdade não é a de ir e vir, mas a de permanecer estrangeiro, diferente dos outros.
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O exilado é o Outro dos outros. Isso significa que ele é diferente dos outros e que eles permanecem diferentes para ele. Sua chegada no exílio permite que os outros descubram que podem criar sua identidade somente em relação a ele. Ocorre uma abertura do “eu” e uma abertura à alteridade. Um estar juntos. O espírito dialogal que caracteriza o exílio pode não ser de reconhecimento mútuo; ele é na maioria das vezes polêmico e até violento. Isso porque o exilado ameaça a singularidade dos habitantes antigos. Até o diálogo polêmico é criativo, porque também conduz a síntese de informação nova. O exílio, não importa sua forma, é incubador de criatividade a serviço do novo.
Vilém Flusser